Há mais música no mundo do que gente para ouvir. E isso é um problema.
100 MIL FAIXAS SOBEM EM SPOTIFY, DEEZER E AFINS TODOS OS DIAS. É UMA ENXURRADA DE CONTEÚDO – QUE REFORÇA A JÁ TRADICIONAL SAFADEZA DA INDÚSTRIA MUSICAL: JABÁ E SUBORNO RESISTEM NA ERA DO STREAMING.
Por Bruno Vaiano – Superinteressante
“Hoje, em qualquer dia da semana, aproximadamente 100 mil músicas novas sobem no Spotify, no SoundCloud, na Apple”, disse o CEO da Warner Music Group, Steve Cooper, em um evento no banco Goldman Sachs em 2022. “É incrivelmente complexo e difícil fazer uma música se destacar em meio às outras 99.999.”
Esse número provavelmente está inflado (é dificil, por exemplo, verificar qual parcela desse material consiste em música antiga que só agora está subindo nas bibliotecas). Mas é fato que houve um aumento brutal: eram 60 mil em 2021, e 40 mil em 2019. E o catálogo total já passou de 100 milhões de músicas. Ou seja: há um boom de lançamentos, o mistério é precisar seu tamanho. Universal, Sony e Warner, sozinhas, soltam 3,9 mil faixas por dia.
Nunca foi tão fácil ou barato gravar uma música e lançá-la na internet – e a população da Terra nunca foi tão grande –, de modo que nunca se lançaram tantas faixas fresquinhas. Em contrapartida, nunca houve nem haverá público para todas as canções que existem (em 2014, estimava-se haver 4 milhões de músicas sem um único play no Spotify, o número com certeza aumentou muito desde então). Isso torna o mercado fonográfico um solo fértil para a sacanagem.
Tudo começa em 1710 – quando o parlamento britânico publicou a primeira lei de direitos autorais. Ela garantia 14 anos de proteção a qualquer obra impressa, prorrogáveis por mais 14. A norma também se aplicava a partituras – que eram o único meio possível de consumir música em casa, já que não havia rádio ou fonógrafo. Nascia a briga pelo copyright dos hits e pelos ouvidos do público.
No Europa do século 19, uma estratégia comum era subornar artistas populares para que eles cantassem lançamentos, estrategicamente camuflados no setlist usual dos shows. O público ouvia, gostava e ia atrás da partitura. Outra fonte razoável de dinheiro eram óperas cômicas e curtas, com refrões fáceis, encenadas em pequenos teatros. As famílias de classe média assistiam a esses espetáculos e então compravam as pautas para tocar as músicas em casa. De novo, e de novo. Imagine uma criança birrenta querendo ouvir Frozen o dia todo – mas não existem CDs ou Spotify, só instrumentos musicais. Esse era o poder das editoras, que podiam vender 30 ou 40 mil cópias de uma partitura por 50 centavos cada.
A competição endureceu de vez nos EUA, a partir de 1890, quando começou a era dos pluggers. Esses eram músicos que, “por meio das artes da persuasão, intriga, suborno, maleficência, bajulação, súplica, ameaça, insinuação e persistência, garantiam que a música de seu empregador fosse ouvida” (a listinha de substantivos é do sociólogo Isaac Goldberg). 1
Uma subclasse de pluggers se infiltrava em todo tipo de estabelecimento: bares, saguões de teatros e hotéis, estações de trem, corridas de cavalo. O objetivo era tocar as canções recém-lançadas repetidamente até elas grudarem na cabeça dos presentes. Alguns dias depois, a vítima se via cantarolando algum refrão chiclete – e acabava indo atrás da partitura. Chegando à livraria, havia pianistas de plantão para tocar amostras grátis e confirmar que você estava comprando a pauta certa.
Ao longo dos anos 1920, o rádio e os discos de 78 rotações começaram a tomar o lugar do papel e do piano na distribuição de músicas, e lá ficaram até os anos 2000. Só os formatos evoluíram: fitas cassete, CDs etc.
O rádio era uma terra sem lei. No livro So you wanna be a rock n’roll star (“então você quer ser uma estrela do rock”, sem edição em português), o baterista Jacob Slichter – que tocava no Semisonic, uma banda de um hit só dos anos 1990 – conta sua peregrinação pelo interior dos EUA atrás de emissoras que topassem tocar uma música da banda.
As gravadoras dividiam o território do país em áreas de atuação controladas por representantes locais, chamados simplesmente de locals, que eram a evolução dos pluggers: bajuladores profissionais que tentavam convencer os chefes de programação das rádios (os PDs) a pôr um banda novata na playlist. Subornar os PDs – o jabá, ou payola, em inglês – é crime, claro. O que não é crime é usar um intermediário para esconder a transação.
Nos anos 1990, as gravadoras pagavam “taxas de consultoria” para supostos “promotores de rádio independentes”, que seriam, no papel, caras que dão dicas para divulgar hits ou qualquer coisa do gênero. Na prática, esses consultores pagavam os PDs para incluir as músicas de seus clientes na rotação. Como os consultores justificavam esses desembolsos para as rádios? Tanto faz. O essencial era quebrar o elo rastreável entre o dinheiro que saía das gravadoras e o que entrava nas emissoras. 2
Os registros de vendas de discos tampouco estavam imunes à sacanagem. Em 1991, a Billboard passou a usar um sistema chamado SoundScan, que coletava dados de vendas de álbuns direto das caixas registradoras. O objetivo era evitar gerentes de loja subornados para inflar o número de vendas de um álbum nos balanços. Outro trunfo do SoundScan era filtrar e excluir da base de dados qualquer compra que não se assemelhasse ao comportamento de um consumidor. Isso impedia as gravadoras de comprarem todas as cópias de seus CDs em uma loja e então devolverem a mercadoria ao lojista – outro golpe comum para inflar os números.
Chegando em 2023, tudo mudou, mas pouca coisa mudou. Há alguns meses, um amigo, Leandro Nakajima, me chamou para gravar os teclados de duas músicas. Elas saíram no Spotify, e eu não sabia como fazê-las se destacar entre as outras 99.998 do dia. Leandro me explicou que existe um mercado clandestino nas playlists públicas que conseguem ter muitos ouvintes (para quem não usa o Spotify: qualquer um pode montar uma playlist e jogá-la no mundão. Para os usuários, essas são as novas rádios. Curadoria gratuita).
“Imagine que um cara qualquer tem uma playlist famosa de indie”, ele me disse. “Você manda sua música, ele vê se curte e põe lá. Até aí, beleza. Mas tem aqueles que cobram para ouvir sua música e considerá-la na curadoria. E tem um nível pior: quem cobra para pôr a música direto na playlist.”
O crítico Ted Gioia resume o problema: em 1959, considerado o ano mais importante do jazz, saíram 500 álbuns do gênero. Entre dez e vinte são considerados clássicos, e uns cem ainda são bem conhecidos por fãs. Hoje, por outro lado, estima-se algo entre 5 mil e 10 mil álbuns de jazz anuais (e estamos falando de um gênero nada popular). “A verdade é que um músico de hoje mal é capaz de começar a competir em seu campo, porque ele está perdido nesse ruído.” 3
A música encara uma crise de demanda. Precisamos descobrir como fazer as canções chegarem às suas audiências (quantos bons rocks e pagodes não alcançam os rockeiros e pagodeiros?) enquanto “Blinding Lights”, do The Weeknd, bate 3,8 bilhões de streams. É claro que há valor em se expressar artisticamente, ainda que ninguém ouça. O problema é que, talvez, haja quem queira ouvir. Só não sabemos bem como viabilizar esse encontro.
Fontes: (1) livro Ta-ra-ra-boom-de-ay: the dodgy business of popular music, de Simon Napier-Bell; (2) livro So you wanna be a rock n’roll star, de Jacob Slichter; (3) texto “How many new songs are released each day?”, de Ted Gioia.