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O coração pulsante do underground carioca
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O coração pulsante do underground carioca

COMO AS REDES INCLUSIVAS DE MÚSICA ELETRÔNICA BRASILEIRAS ESTÃO TRABALHANDO PARA EDUCAR E UNIR A CENA LOCAL

Fotos Flávia Freitas
De daily.redbullmusicacademy.com
Traduzido por Leonardo Mendes e Rodrigo Guimarães

Em preparação para dois eventos esportivos mundiais – a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 – a cidade do Rio de Janeiro passou por uma reformulação significativa. Grandes investimentos foram feitos, tanto pelo governo municipal quanto pelo setor privado, para atualizar e criar novas infraestruturas. Começando em 2003 e terminando em 2014, o Ministério da Cultura do Brasil desenvolveu e promulgou novas políticas generosas que, de acordo com estudos acadêmicos de mídia de Leslie Marsh, foram destinadas a promover uma democracia cultural, com os objetivos mais amplos de superar a exclusão social, atrair investimentos e criar empregos. À medida que o Estado ampliava sua definição de cultura, mais financiamento público e doações eram disponíbilizados para artistas que trabalham na música, teatro, artes visuais e cinema.

Artistas independentes de música eletrônica no Rio existiam em paralelo a esta bonança, mas ainda assim colheram os frutos de um clima que era muito mais amigável às expressões artísticas alternativas. Os locais informais não enchiam com tanta frequência e permitiam que as festas em bloco acontecessem sem muita confusão. As festas de rua prosperavam durante os fins de semana, constituindo excelentes pontos de encontro entre os foliões casuais e a cena menos tradicional do underground.

Um dos melhores exemplos da época foi uma festa de rua chamada O/NDA, um dos maiores eventos para a cultura da música underground no Rio, e permitiu que Techno, House e muito barulho florescessem. Mas assim como artistas e músicos independentes estavam começando a estabelecer um público, as condições em torno da cidade e do país começaram a se deteriorar em um ritmo acelerado. O impacto de uma crise na receita do petróleo e do aumento do crime violento ocorreu em conjunto com a “Operação Lava Jato” – uma operação maciça de combate à corrupção que começou em 2014 e ainda está em andamento. Dirigido pela Polícia Federal brasileira, descobriu a lavagem de mais de 9,5 bilhões de dólares por funcionários do governo, resultando na prisão do ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva e do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, entre outros, e do impeachment da então presidente Dilma Rousseff. O aumento do desemprego e o agravamento das crises políticas, econômicas e de segurança pública tornaram quase impossível que qualquer tipo de empreendimento artístico, muito menos uma cultura underground prosperasse, e a cidade caía por fim nas mãos do político ultraconservador Marcelo Crivella, o que também não ajudou muito.

Ananda Nobre e Érica Alves, ambas nascidas no Rio de Janeiro, retornaram à cidade em 2015 e 2016, respectivamente, bem no meio do declínio cada vez maior da cidade. Elas se tornaram amigas enquanto tentavam estabelecer suas carreiras musicais na fértil cena de São Paulo, com um sucesso moderado – Alves como cantora / compositora focada em shoegaze (uk indie rock) e techno, e Nobre com um recém-formado DJ set de Techno pronto para leva-lo para o próximo nível. Um conjunto de circunstâncias pessoais (para Alves a dissolução de sua antiga banda, os Drone Lovers; e para Nobre, a falta de oportunidades para o desenvolvimento artístico) as levou de volta ao Rio de Janeiro para começar de novo.

Para Nobre e Alves, o Rio era uma lousa em branco muito necessária; uma cidade grande com uma cena menor e uma chance de construir coisas do zero. Antes de sua chegada, Alves explica que a relativa segurança e abundância de festas de rua com pouca ou nenhuma cobertura complicaram o terreno dos clubes, tornando mais atraente para o público participar de eventos ao ar livre mais alinhados com a cultura de praia do Rio. Nos últimos dois anos, no entanto, as festas de bloco se tornaram quase extintas.

“De repente, os clubes começaram a voltar porque as ruas não são mais tão seguras e o governo está dificultando a realização de festas de rua”, explica Alves em uma ligação de sua casa. “O prefeito nem sequer foi ao Carnaval! O carnaval é uma parte tão importante e formadora da cultura do Rio. Por causa de sua postura religiosa, ele optou por não estar presente e também cortou o financiamento da comunidade. Não havia polícia nas ruas. Quando se trata de cultura, ele abandonou a cidade.”

Embora os clubes sejam novamente o principal local para ouvir música eletrônica, eles enfrentam um público cada vez com menor poder aquisitivo e que não está acostumado a pagar por uma taxa de entrada. Festivais de EDM como Ultra Brasil e Rio Music Carnival continuam populares, mas, apesar de estarem dispostos a prestar atenção em artistas brasileiros como Alok e Marcelo Cic, eles não têm muito interesse em contratar Live Acts, muito menos mulheres e artistas LGBTQ. A comunidade underground, dizem Alves e Nobre, tem sido sistematicamente deixada à própria sorte, com oportunidades limitadas de se realizar algo e muito pouca chance de ganhar a vida como artistas em uma das maiores capitais culturais do mundo.

Como artistas do techno dispostas a não atender às tendências, Nobre e Alves decidiram criar um espaço para si mesmas, criando em 2017 a UNA, coletivo liderado por mulheres. Com a UNA, a dupla começou a dar oficinas de synth para mulheres, e criou a NUA – uma festa de house destinada a mostrar o trabalho dos alunos. Independentemente, Nobre dirigiu sua festa de techno KODE, e Álves a Manga Rosa, um coletivo de DJs que inclui os produtores locais João Pinaud, Gustavo Tata e Pedro Piu. Apesar de seus esforços para ajudar a regenerar a cena do techno na cidade, Alves e Nobre ficaram com várias questões existenciais, sendo a mais essencial: o que a comunidade de música eletrônica underground do Rio precisa fazer para garantir sua sobrevivência?

“Vivemos em uma bolha muito fechada”, explica Alves. “Estamos dispostos a estourar nossa bolha ou não? Acho que essa é a questão fundamental que nos perguntamos no Rio há 300 anos. Tudo se resume às mesmas coisas: como expandimos nosso público? Nós expandimos isso? Como podemos alcançar a sustentabilidade trabalhando dessa maneira ou dessa maneira? É muito difícil se movimentar no Rio. Se você quiser obter uma audiência, você tem que ir para uma parte diferente da cidade onde as pessoas vão querer ir. Você tem que gastar muito dinheiro em publicidade e comunicação com as pessoas. É muito difícil.”

Vendo uma falta de coesão entre os grupos que se formam em torno de diferentes gêneros e estéticas dentro da cena underground no Rio, Alves decidiu organizar uma reunião comunitária para discutir possíveis soluções para os problemas em questão. Em março de 2018, Alves, Nobre e uma lista de produtores e artistas – incluindo o renomado DJ, Mauricio Lopes; Cabbet Araújo, dono do clube Fosfobox; os fundadores do coletivo Manga Rosa; e Cristiane Pinheiro, dona do Club Éden, entre outros – começaram a se reunir regularmente para definir sua agenda e começar a coletivizar o underground carioca. Muitas das grandes ideias surgiram das primeiras reuniões, incluindo o desenvolvimento de workshops e a conscientização sobre o fato de que artistas também são trabalhadores. “Estamos tentando fazer algum tipo de associação ou aliança para ajudar uns aos outros e criar uma vibração mais saudável entre nós nesses tempos difíceis”, explicou Alves, na época. “Estamos percebendo que não podemos fazer negócios isoladamente”.


Magali Reyes, Claudio de Oliveira, Mateus Tuk and Andreia Santiago

Inicialmente eles se reuniram em torno do Éden, um clube de cinco andares de propriedade de Cristiane Pinheiro e Letícia Dantas, localizado na Rua Sacadura Cabral, perto do porto do Rio de Janeiro. No auge das políticas públicas promulgadas durante as presidências de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff no início de 2010, a zona portuária abandonada estava destinada à revitalização. Quando o projeto, apelidado de Porto Maravilha, foi abruptamente interrompido devido a uma explosão na bolha imobiliária e aos escândalos de corrupção envolvendo o governo municipal e a estatal petroleira, a Petrobras, a maioria dos incorporadores ficou com construções desocupadas. Pinheiro e Dantas, empresárias e produtoras da festa LGBTQ, a Desviadão, convenceram o proprietário de um desses prédios a transformá-lo em boate. Em novembro de 2014, a Éden abriu suas portas, focada na criação de um espaço inclusivo para a comunidade de música eletrônica underground.

“Por todo esse processo, tivemos a oportunidade de ver quantas pessoas que tivemos aqui no Rio, que eram talentosas, mas não tinham um lugar ou projeto”, explica Pinheiro. “Em 2017, investimos em um ótimo sistema de som chamado Pure Groove. Foi surpreendente para o Rio, porque não tínhamos um clube underground com um ótimo sistema de som. Não desde a minha juventude. Então, começamos a conversar com todos esses artistas e concluímos que precisávamos ter o Éden como um lugar para hospedar essas pessoas. Não apenas os frequentadores, mas os artistas precisavam de algum conforto. Eles precisavam ter as ferramentas certas para mostrar seu trabalho – fazer com que toda a cena se movesse o tempo todo”.

O clube tornou-se um espaço temporário para Alves e outros produtores na cena procurando sediar eventos que caíssem fora do EDM, funk ou outros gêneros populares. Mais importante, eram eventos que incluíam todos os tipos de público e todos os tipos de artistas e DJs. Rapidamente se tornou a casa da Manga Rosa, e Alves esperava ajudar a transformá-lo em uma sede de educação também, com a ideia inicial de hospedar DJs e produzir aulas para aspirantes a artistas que não necessariamente sabiam por onde começar a carreira. Mas poucos meses após o início das reuniões comunitárias, a Éden fechou as portas devido aos altos custos indiretos e à falta de frequentadores de clubes que queriam se aventurar fora do centro da cidade. Em mais de uma maneira, Éden se tornou uma vítima, não apenas da crise econômica, como também do público underground – as mesmas coisas que o grupo estava tentando combater.

“Nos primeiros anos, começamos a organizar festas para 800 ou 700 pessoas, mas com o passar do tempo, todas as partes reduziram de tamanho e agora temos festas para 300 a 200 pessoas”, diz Pinheiro. “Quando analisamos esse cenário, o Éden, como uma casa, decidiu começar a hospedar outras companhias no mesmo prédio para ver se poderíamos sobreviver. Mas é muito grande. Não podemos ter um prédio de cinco andares apenas para música eletrônica underground. Não queremos trabalhar com coisas não undergrounds – não é nossa intenção, não é no que acreditamos.” 

Atualmente, Pinheiro e Dantas pretendem começar a produzir eventos no Rio de Janeiro e em São Paulo, dando continuidade ao trabalho que começaram com o clube. No entanto, o fechamento do Éden causou um grande impacto na comunidade e os privou de mais um espaço para o techno, noise, minimal, house e outros gêneros. “Éden é um bom exemplo [do que rotineiramente acontece no underground]”, explica Nobre durante uma chamada pelo Skype de Berlim, onde ela passou um mês fazendo shows. “Eles tinham um clube muito bom, eles investiram em um bom sistema de som, mas no final eles não podiam pagar as contas porque também tentavam seguir uma linha musical mais alternativa e tiveram que fechar. É assim que a cena funciona lá. Desde que voltei para o Rio, há cerca de quatro anos, tenho tentado realmente avançar e é muito difícil. Mas se você não continuar tentando, você não terá a oportunidade de tocar, e a cena nunca acontecerá se ninguém fizer nada, então você só precisa continuar tentando.”

Por volta da época do fechamento do Éden, as reuniões da comunidade entre artistas underground e donos de clubes começaram a focar em uma série de questões específicas: limitar as festas sem cobrança de ingressos; encontrar novas maneiras de comercializar eventos undergrounds fora do Facebook; e ter representação de mulheres, minorias e pessoas LGBTQ. Mais importante ainda, o grupo percebeu que um dos seus principais problemas era a falta de uma classe artística e um público educado.

“Acho que há mais eventos do que o necessário porque, como não temos uma economia de vida noturna sustentável, todos os DJs precisam ter sua própria festa”, explica Alves. “Ninguém contrata ninguém, essa é a coisa. Contratar [artistas] da cena local que estamos tentando reunir também estaria matando suas festas, porque é o mesmo público e eles já os viram, então por que eles pagariam duas vezes, sabe? Precisamos criar um excedente de artistas técnica e musicalmente proficientes e um excedente de público”.

Em agosto de 2018, um novo espaço surgiu na Fosfobox, um clube de 15 anos de idade, perto da estação de metrô de Copacabana – uma área mais acessível aos freqüentadores de clubes. É de propriedade de Cabbet Araújo, um veterano da cena clubber que, nos anos 90, estava no comando de um dos templos de música eletrônica do Rio, o Bunker 94. Tendo sido fotógrafo e membro da comunidade da vida noturna durante a maior parte de sua vida, ele viu os ciclos pelos quais o Rio passa, especificamente quando se trata de interesse em música eletrônica mais mainstream – seus clubes contrataram artistas como Josh Wink, Laurent Garnier e Monika Kruse, entre outros. Ele também é um defensor da educação. Para fomentar um movimento artístico no Rio, ele fez da Fosfobox a casa da WAVE, uma escola de DJ onde Alves, João Pinaud e pesquisadores como Fernanda Mello e o jornalista Camilo Rocha, estão adotando uma abordagem holística para criar uma cena. Mello, por exemplo, organizou recentemente um workshop intitulado “Cidades que Dançam”, focado em discutir a história da dance music em todo o mundo, os passos de cidades como Amsterdã, Berlim, Londres e (até recentemente) Tbilisi para garantir uma vida noturna saudável economicamente, e como o Rio de Janeiro poderia eventualmente aprender com sua experiência.


Raiana Moraes, Claudio de Oliveira, Sarah Lelievre, João Pinaud and Érica Alves

“[Queremos criar] uma classe artística consciente, que saiba o que estamos fazendo, de onde vem essa música, por que estamos fazendo isso”, explica Alves. “Uma das aulas que ensinamos é centrada no processo criativo, por isso não é apenas “vamos tocar música ao vivo ou qualquer outra coisa.” É mais “Como podemos nos tornar artistas? Como podemos tornar a dance music artística?”. Vamos ensinar técnicas, vamos estudar psicologia, pintura e dança. Nós precisamos de cultura. A vibe do Rio é muito parecida com Los Angeles, em certo sentido. Há muitas pessoas bonitas que querem se divertir e ir à festas, mas elas não estão tão preocupadas ou ainda não foram tocadas pela arte, eu acho. Estamos tentando elevar a qualidade da música a um nível artístico para que ela possa ser mais sólida.”

Outro efeito imediato das reuniões da comunidade foi a criação de um calendário de eventos – um Google Doc que nasceu da união entre diferentes grupos na cena underground. Foi uma grande conquista e um passo em direção a uma frente mais unida, mas foi também o que começou a sinalizar o fim da organização coletiva. No final do verão de 2018, as reuniões cessaram. De acordo com Alves, o grupo parece não conseguir chegar a um consenso sobre quais questões focar e quais poderiam ser resolvidas de forma realista. Nobre, por sua vez, acredita que as diferenças entre os métodos de trabalho daqueles com maior sucesso comercial e os do underground dificultam a elaboração de um plano de trabalho que beneficie a todos.


No entanto, as reuniões tiveram reverberações positivas. Músicos e foliões se reuniram em torno de dois bares, After Bar e Dama de Aço, para formar uma pequena cena de festas após o expediente. Novas parcerias entre grupos foram formadas e, de acordo com Alves, há uma indústria de cartazes em expansão, com designers gráficos produzindo “belas obras de arte impressas”.

Nobre também viu uma mudança positiva na cena como resultado do trabalho dela e de Alves com o Coletivo UNA, que se concentra em incentivar as mulheres e os artistas trans a terem uma melhor representação nas festas e nas listas de artistas. “Há duas coisas que vejo acontecendo: uma é que as meninas me enviam mensagens e dizem que querem aprender a tocar”, diz Nobre. “Elas veem que é possível que elas tenham uma carreira na música, então isso está acontecendo e isso é muito bom. E a outra coisa é que outras festas do Rio estão se sentindo como se não pudessem ter uma formação completa sem mulheres, então outras festas me mandam uma mensagem e dizem: ‘Eu estou tendo uma festa e tem esse som, você tem um garota que você pode me dizer que é boa para esse line up?’ Eu estou sempre insistindo, mesmo que isso me torne impopular.”

No entanto, artistas, donos de clubes e produtores reconhecem que a criação de uma ação coletiva bem-sucedida no Rio, especificamente quando se trata de grupos com interesses diferentes ou concorrentes, é um esforço difícil e às vezes frustrante. A realidade do underground do Rio de Janeiro é que, como Alves explicou, as circunstâncias de todos são completamente diferentes. No entanto, os blocos de construção para a unidade futura estão lentamente começando a se acumular.

“Temos que perceber que estamos há apenas dois anos nessa depressão econômica e política”, diz Alves. “Como não podemos tornar isso tão trágico? O que posso fazer para tornar meus eventos sustentáveis ​​em tempos como esses? Talvez essas iniciativas pequenas e segregadas precisem de tempo para serem incubadas. O que temos que fazer quando estamos passando por momentos como este? Educar, se informar, ler, experimentar, agir, perseguir algumas ideias. Então, quando chega a hora, quando a economia começa a crescer, temos uma sólida base cultural. Passamos por momentos difíceis juntos – saberemos como comemorar quando as coisas melhorarem novamente.”

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